Calvário durou de 1981 a 1987…
Faço uma pausa na época de aluno na Escola de Árbitros para relembrar o exposto nas belas páginas do saudoso jornal Gazeta Esportiva, de 04 de julho de 1981, sendo que este mesmo texto foi reproduzido no blog de outro reconhecido jornalista Wanderley Nogueira, em 19 de abril de 2013.
O motivo de reiterar este texto tem relação com nossa trajetória na arbitragem, pois envolve passagens com o árbitro Roberto Nunes Morgado e o jornal GE que tive a honra de levar uma coluna semanal nos primeiros anos da década de 90.
Antes de reproduzir, estava indo para a Escola de Árbitros, quando cruzei com Morgado no corredor do prédio da FPF. Ele me chamou de lado e demonstrou com os dedos indicadores a distância entre ele, o famoso árbitro Morgado e o projeto de árbitro dizendo: “estou aqui (em cima) e você jovem, aqui (bem abaixo) e sempre que nos encontrávamos havia um cumprimento. Qual o motivo de isto ter parado?” Respondi que não havia percebido e nos desculpamos.
Morgadinho, de forma dura, nos repreendeu dizendo que não existia distâncias entre árbitros e o que o objetivo era aconselhar que, em qualquer atividade, ainda mais na arbitragem que todos são contra, devemos cumprimentar a todos indistintamente. Foi uma grande lição!
Vamos relembrar o calvário deste grande árbitro iniciado em 1981, relendo o jornal GE:
“26 DE JUNHO DE 1981. Quase meia-noite, frio, pouco movimento na BR-116, apenas a passagem de alguns caminhões carregados com destino ao Sul do País. Um automóvel da Federação Paulista de Futebol chegou silenciosamente transportando um moço magro, abatido, tenso, na altura do quilômetro 18,5. Ali, uma clínica importante, conhecida, famosa. Local de recuperação física e mental, ideal para repouso, desintoxicação e sonoterapia.
O tratamento é caro e somente pessoas abastadas, criminosos famosos (Doca Street), esforço familiar ou uma entidade assumindo as despesas provocadas pelos pacientes, todos em regime de internação, aqueles que podem usufruir.
Lágrimas escorriam dos olhos de Roberto Nunes Morgado mas ele admitia não ter outra solução. Estava apavorado, vivendo uma enorme crise emocional. Vivendo um verdadeiro drama.
Os episódios anteriores a internação foram muitos e todos provocando reações de desespero naquele bom árbitro de futebol e inseguro homem. Problemas pessoais, sentimentais, profissionais. Filho único, família humilde em torno do seu apito. Os médicos garantem que ele poderá voltar a apitar normalmente. Ficará totalmente recuperado – afirmam os especialistas – e viverá tranqüilo.
Há algum tempo atrás, Roberto Nunes Morgado foi assaltado e ferido com certa gravidade. Necessitou ficar internado e sua maior preocupação era saber se poderia voltar a apitar. Os médicos notaram que a recuperação dos ferimentos era rápida, mas a psicológica não corria tão bem. A arbitragem era o seu único caminho, talvez uma grande e necessária fuga e o medo de não poder mais vestir o uniforme negro, rezar muito nos vestiários e ser o todo poderoso das partidas, era intenso.
Formado na turma de 1969, Roberto Nunes Morgado recebeu como prêmio pelas atuações convincentes o privilégio de dirigir jogos muito importantes. Umbandista por convicção, Morgado, chega sempre com uma hora e meia de antecedência aos estádios onde vai trabalhar, pois seu ritual demora quase uma hora, com reza aos seus orixás.
Mas ele começou a mudar depois de ter sido ferido. Tornou-se mais introvertido, com sintomas de displicência, deixou o emprego que tinha numa churrascaria – gerente – alegando que precisava dormir cedo e não queria andar a noite pelas ruas de São Paulo. Passou a viver somente das arbitragens e com pouca atividade. Um grande tempo ocioso, muito tempo para refletir, raciocinar. Percebeu a sua importância para os pais – dependentes dele – e verificou um futuro incerto, repleto de altos e baixos.
A sua queda psicológica foi flagrante, enorme, quase palpável. Insistia em recusar a ajuda de alguns amigos – entre eles, Francisco Ciasca e Marcio Campos Salles – e suas arbitragens começaram a provocar dúvidas e contestações, algo raro na sua carreira. As pessoas criticavam seus trejeitos, atitudes arrogantes, lembrando Armando Marques, mas não atacavam suas boas condições técnicas e físicas. Entretanto, abatido, a preparação física foi esquecida e os reflexos diminuíram.
Os problemas sentimentais ajudaram muito a chegada do desespero e Morgado chegou a confessar que “queria morrer, desacreditava em Deus e seria melhor para todos, ele desaparecer…”.
O médico Osmar de Oliveira, outro amigo de Morgado, o atendeu dezenas de vezes nas mais variadas horas do dia e da noite. Preocupado com a sua saúde, Morgado queria vitaminas, análise cardíaca, pulsação. Queria o amigo médico para certas confissões e desabafos. Tinha medo de perder a condição de aspirante do quadro da FIFA e ao mesmo tempo não conseguia reagir ao abatimento que o envolvia. Foi aconselhado a procurar um psicólogo amigo de Marcio Campos Salles e depois de algumas consultas começou a mostrar sintomas de recuperação. Aquele medo, aquela “mania” de doença, aqueles traços de insegurança pareciam estar desaparecendo.
Mas o rompimento amoroso, a dependência da arbitragem, a família precisando dele, provocaram uma crise emocional fortíssima. Às cinco horas da madrugada do domingo em que jogariam Ponte Preta e São Paulo, em Campinas, o médico Osmar de Oliveira foi acordado. Morgado precisava dele. Estava afobado, nervoso, não conseguia dormir e iria apitar naquela tarde um verdadeiro clássico em Campinas. Estava desesperado e não conseguia controlar-se. O médico o encaminhou para o Hospital Bandeirante e recebeu o tratamento necessário acrescido de um calmante. Em vista deste fato, Osmar de Oliveira proibiu que ele trabalhasse no jogo Ponte Preta e São Paulo. O diretor do departamento de árbitros não foi localizado e o secretário-geral da Federação Paulista de Futebol assumiu o problema e substituiu Morgado por Almir Laguna.
Em jogos anteriores, Santos e Corinthians e Portuguesa de Desportos e Ponte Preta, o rendimento técnico de Morgado não foi dos melhores. O árbitro resolveu ficar enclausurado em sua casa e não recebeu nem os amigos mais íntimos. Demonstrava intenção de abandonar tudo. O próprio secretário-geral da FPF esteve na residência do apitador e constatou a gravidade da situação. Em seguida o presidente do Sindicato dos Árbitros, José Astolfi – quase a força – levou-o para o prédio da FPF.
Por duas horas, Morgado ficou conversando com o presidente Nabi Abi Chedid. Depois, foi levado para a sede da entidade dos árbitros, para ficar preservado aos comentários, que certamente seriam muitos.
O presidente da FPF resolveu levá-lo para Bragança Paulista e ali Roberto Nunes Morgado foi examinado por um médico amigo de Nabi Abi Chedid.
Osmar de Oliveira e o médico da família Chedid resolveram que o caminho seria a internação imediata e a Clínica Maia foi contatada. O quadro era preocupante: subnutrição provocada pela crise nervosa que vinha se arrastando há meses. Necessitava de calmantes, tratamento psicológico e uma super alimentação. Um tratamento orçado em 20 mil cruzeiros diários. A Federação Paulista de Futebol e a Apafup (entidade dos árbitros) concordaram imediatamente com os custos apresentados e exigiram apenas que simplesmente o melhor fosse feito para a mais rápida recuperação de Roberto Nunes Morgado.
Somente o pai e a mãe do árbitro podem visitá-lo e somente e mesmo assim por apenas alguns minutos. A clínica afirma que o estado do apitador é bom e que ele está absolutamente calmo e tranqüilo. Garante que Morgado tem se alimentado bem e que nos próximos dias talvez algumas visitas sejam permitidas.
Roberto Nunes Morgado deverá ficar internado no máximo mais 15 dias. Tanto a Federação Paulista de Futebol como a Associação dos Árbitros estavam escondendo informações a respeito do local onde Morgado está internado, com o objetivo de evitar a retirada de Morgado do quadro de aspirantes da FIFA.
Como os médicos garantem que este tratamento não provocará nenhum problema na personalidade de Roberto Nunes Morgado, ninguém acredita que os órgãos que dirigem a arbitragem tomem medidas precipitadas e injustas. O médico Osmar de Oliveira foi mais claro:
“Isso que aconteceu com o Morgado pode acontecer com qualquer ser humano e a recuperação é certa. São momentos terríveis que uma pessoa enfrenta, mas com um tratamento correto – é o caso atual – voltará a ter um comportamento normal, perfeito, ideal para qualquer função. Morgado não terá nenhum problema para continuar apitando. Aliás, acho que ele subirá de produção. Afinal, aquela tensão que o envolvia certamente será superada”.
“Ele sempre foi um dos mais responsáveis que conheci dentro da arbitragem. Nunca ia dormir tarde quando tinha que apitar no dia seguinte. Controlava sua alimentação, concentrava-se, até. Sempre preocupado com a saúde. Apenas sentia insegurança e certamente agora tudo será superado”.
Foram muitas as pessoas que surgiram para ajudar o moço Roberto Nunes Morgado. Felizmente, por incrível que possa parecer, desinteressadamente. Os homens se uniram e resolveram apoiar o homem Morgado, o árbitro Morgado, supersticioso, crente, enérgico, espalhafatoso, até engraçado. Mas eficiente.
Quando ele sair daquele casarão pintado de azul e branco, com enfermeiros frios e fortes, tomara que deixe todos os seus problemas lá dentro. Morgado não saberia viver sem a arbitragem.
Ele precisa dela não só para viver e sustentar os velhos pais, mas necessita dela para alimentar uma satisfação íntima perfeitamente natural. Como o escritor não pode deixar de escrever, Morgado não pode parar de apitar.
Eliminando os seus “grilos”, Morgado terá que receber o respeito e a compreensão de todos: jogadores, dirigentes, árbitros, críticos e torcedores. Ninguém tem o direito de esquecer que um árbitro é um homem e como tal, erra, chora, ri, trabalha, acerta e fica doente.
O drama de Roberto Nunes Morgado vai terminar. Enquanto isso permanece a esperança de vê-lo, brevemente, rezando aos seus orixás, pedindo uma boa arbitragem e quase sempre sendo atendido.”
Poderia iniciar mencionando (faremos isto mais a frente) um pouco da brilhante trajetória deste grande árbitro de futebol, mas resolvi reeditar a narrativa do jornal para que todos saibam que antes do árbitro existe o homem, com seus problemas em várias dimensões.
Sem dúvida, Morgadinho foi um ídolo de várias gerações de árbitros.
Sua última partida foi a semifinal do Paulistão de 1987, entre São Paulo e Palmeiras, quando expulsou quatro palmeirense. Neste ano, ainda mais doente, foi reprovado na avaliação teórica da CBF, o que o impediu de atuar.
No ano seguinte, em fevereiro, foi internado no Hospital Emílio Ribas, em São Paulo, com Aids. Neste momento de dor, apenas o presidente do Sindicato e poucos amigos citados acima o acompanharam até sua morte, em 26 de abril de 1989, com 43 anos de idade.
Chegou a ser Aspirante-FIFA e atuou no futebol de Santa Catarina, dando shows de atuação.
Se hoje sofremos para eliminar o preconceito da sociedade, imaginem na década de 80?
Vamos em frente e até qualquer dia!
Foto do Acervo Gazeta Esportiva Press: O árbitro Dulcídio Wanderley Boschilla (C) e seus auxiliares Roberto Nunes Morgado (E) e Emídio Marques de Mesquita, após a partida entre Corinthians e Ponte Preta, válida pela primeiro jogo das finais do Campeonato Paulista de 1977.